As harpas da resistência<br>no discurso poético de Fernando Miguel Bernardes

Domingos Lobo

Existe em Por­tugal, como con­sequência ló­gica da luta e da re­sis­tência an­ti­fas­cista, um sin­gular pa­tri­mónio ar­tís­tico, um acervo cri­a­tivo único nas suas pre­missas hu­ma­nistas e no modo di­a­léc­tico da sua ex­po­sição, um la­bo­ra­tório de ideias e prá­ticas pro­gres­sistas que con­jugou, na sua plural forma, a pin­tura, o en­saio, a crí­tica, o ro­mance, o te­atro, a po­esia e o ci­nema. Ne­nhum outro mo­vi­mento cul­tural e cí­vico foi, no nosso País, tão amplo e in­flu­ente como o neo-re­a­lismo. Ne­nhum outro país eu­ropeu, so­frendo as agruras do nazi-fas­cismo, con­se­guiu juntar no plano da luta ide­o­ló­gica e da in­ter­venção cul­tural tão vasto, po­lié­drico, ma­nan­cial cri­a­tivo como o pro­du­zido entre nós, de 1939, ano da pu­bli­cação de Gai­béus, até aos anos 1980, com a pu­bli­cação de al­guns tí­tulos de ro­mances cuja te­má­tica se fi­xava, cri­ti­ca­mente, no des­montar do ranço mí­tico sa­la­za­rento, das ra­zões im­pe­riais, da pre­ser­vação do sa­grado es­paço pá­trio, que ser­viram de lema pro­pa­gan­dís­tico ao fas­cismo para com­bater os mo­vi­mentos de li­ber­tação nas co­ló­nias, e es­ti­veram na gé­nese dos con­flitos co­lo­niais dos anos 1961/​74. De sa­li­entar o apa­re­ci­mento, em­bora tardio, por mo­tivos de todos co­nhe­cidos, da obra fic­ci­onal de Ma­nuel Tiago, in­con­tor­nável pelo tes­te­munho, pela sin­ce­ri­dade, pela co­ragem da afir­mação de um per­curso, obra que, de modo bri­lhante, per­tence a este ciclo de mais de meio sé­culo de pro­dução ro­ma­nesca, poé­tica e en­saís­tica.

Fer­nando Mi­guel Ber­nardes par­ti­cipa deste coro de vozes le­van­tadas, que ou­saram de­sa­fiar os li­mites vi­gi­ados do seu tempo, que ras­garam o si­lêncio e mesmo cer­cados, mesmo li­mi­tados às quatro pa­redes exí­guas dos ca­tres (e Ber­nardes es­teve em quase todos, pas­sando pelo Al­jube, Ca­xias, Coimbra e pelos sub­ter­râ­neos si­nis­tros da Rua do He­roísmo, no Porto), não dei­xaram de afirmar que a ín­tima re­volta/​trans­bordou//​E assim eu canto isto e muito mais/​porque a alma de um povo é ines­go­tável. Pela co­ragem com que de­nun­ciou o país triste, que soube, re­belde, re­sistir ao medo, àqueles que que­riam que ele, Poeta e Homem Livre, fi­casse e não/​fa­lasse/​isto é: mor­resse, na guerra, nas lon­juras de África, dado que um Homem, este, como tantos ou­tros, mesmo longe/​mete medo, a As­sem­bleia da Re­pú­blica re­co­nheceu o mé­rito dessa fron­ta­li­dade, dessa luta e o «mé­rito ex­cep­ci­onal da con­tri­buição dada à de­fesa da Li­ber­dade e da De­mo­cracia».

Re­ve­lado em 1982, com o livro de po­emas para cri­anças Uma Es­trela na Mão, a obra do autor de O Fio das Harpas, di­vide-se entre a po­esia, o ro­mance, a nar­ra­tiva his­tó­rica e os li­vros para a in­fância e ju­ven­tude. Em O Fio das Harpas, o autor re­colhe um vasto acervo poé­tico que an­dava dis­perso, o que não im­pede a sua in­trín­seca uni­dade te­má­tica e formal, dado existir neste con­junto de textos, uma res­so­nância, uma mo­nódia, um po­li­fó­nico des­lumbre, um fundo rumor de vozes que nos vem da mais re­mota he­rança da pa­lavra poé­tica, de um modo de cons­trução verbal, de uma sin­tác­tica forma de cons­trução frá­sica sem tempo nem lugar; po­esia que é, no seu modo de se expor, de uma ex­tensa, mo­delar mo­der­ni­dade, mas ra­di­cando no corpo da nossa me­lhor tra­dição lí­rica, a que neste mag­ní­fico livro de Fer­nando Mi­guel Ber­nardes, nos é dado ler. Uma poé­tica cons­truída fio a fio, pa­lavra a pa­lavra, com ex­trema can­dura, sem abs­tra­ci­o­nismos me­ta­fó­ricos a armar ao mo­der­nismo de re­trós velho, antes a re­cu­perar uma fala, um ritmo, uma pai­sagem fó­nica de an­ces­trais vi­bratos, de mo­de­la­ções con­so­nantes. Uma poé­tica de en­trega, de cir­cu­lares ar­re­ba­ta­mentos, também de de­núncia cer­teira e clara, sem es­paço para o em­buste. Es­sen­cial no que nela ha­bita de en­trega e re­cusa, de res­pi­ração com o corpo todo ex­posto, co­ra­josa e lím­pida: Se eu ti­vesse um chi­cote/​chi­cote de fios de aço/​eu não sei o que faria/ – mas não faria o que faço// Certos ho­mens que eu co­nheço/​sem alma e sem ver­gonha/​veja você su­ponha:/​se eu ti­vesse um chi­cote... (...) homem que viva do homem/​de­certo não ha­veria.../​se eu ti­vesse um chi­cote/​eu nem sei o que faria. Há re­fe­rentes pa­ra­le­lís­ticos nesta cons­trução, que re­montam aos can­tares jo­gra­lescos e po­pu­lares, uma toada que lembra An­tónio Aleixo, neste jeito de afir­mação e de es­con­juro.

O Fio das Harpas, de Fer­nando Mi­guel Ber­nardes, pu­bli­cado em 2009, reúne grande parte do acervo poé­tico do autor de Es­crito na Cela, que os es­birros do fas­cismo «con­fis­caram», em buscas e apre­en­sões di­versas, en­con­trados nos ar­quivos da Torre do Tombo, para além de textos que ser­viram para can­ções que todos trau­te­amos, gra­vadas por Adriano, José Afonso, Ma­nuel Freire e tantos mais. Mesmo que his­to­ri­ca­mente da­tados (grande parte dos textos aqui pu­bli­cados si­tuam-se entre 1951 e 1974) estes po­emas de Mi­guel Ber­nardes não per­deram o fulgor, a seiva, o fundo clamor que levou à sua cri­ação, a essa ur­gência de dizer que se está vivo e de pé que, apesar das grades e dos medos o poeta con­segue, in­ven­ta­ri­ando lú­cido os dias da ver­gonha, afirmar que Venci um dia/​outro me dói:/​é isto a vida/​de quem a pensa. São, ainda, so­bre­tudo hoje e aqui, po­emas para o nosso tempo, dado que dizem da in­jus­tiça, de um país, de novo, a en­tris­tecer, país, de novo, a deixar aban­do­nadas vilas/​não/​por ca­ra­velas; país a partir para longes mundos, não já clan­des­ti­na­mente/​em ca­miões/​de ove­lhas, mas le­vando no bornal, como no pas­sado, um fu­turo in­certo, acos­sado pela po­breza, pelo de­sem­prego, pela de­ses­pe­rança.

Fer­nando Mi­guel Ber­nardes, en­tende a li­te­ra­tura, tanto nos versos da re­sis­tência, como nas es­tó­rias e po­emas para os mais novos, como uma forma de ac­tu­ação cí­vica, de re­flexão sobre um tempo de es­tupor, de ig­no­mínia e in­jus­tiça. De de­núncia. Voz er­guida para dizer o que vem à su­per­fície da fala, o que não pode, por ati­tude pe­rante a vida e os ou­tros, calar. Porque calar é morrer, e o poeta está vivo, quer-se vivo e atento e re­sis­tente: Vá­rias vezes me rou­baram/​flores que trazia no peito./​Quem me as roubou não quer ver/​que me re­nascem a eito...

Fer­nando Mi­guel Ber­nardes, poeta de um tempo que atra­vessa o nosso tempo, este tempo, cujas pa­la­vras andam por aí can­tadas nas vozes mais claras da nossa me­mória co­lec­tiva, vozes de um tempo em que dá­vamos o peito às balas e can­tá­vamos para que o grito das nossas vozes ao alto fu­rassem o ci­mento e acor­dassem o si­lêncio pros­trado da ci­dade.

Cantas/​en­quanto te regam as raízes com vi­nagre?, verso de Egito Gon­çalves que o autor es­co­lheu para epí­grafe deste livro sin­gular. Claro que can­tamos, can­ta­remos sempre, mesmo acom­pa­nhados pelas harpas de um país, de novo, triste. Can­tamos, com os teus versos por me­dida, Fer­nando (os teus, e de ou­tros com­pa­nheiros que, como tu, dis­seram que é pre­ciso estar vivo e cantar) porque da­quele que tra­balha serão/​a casa/​o pão/​o fruto e a se­mente/​desde que o Sol que nós pu­xámos/​não se perca entre os dedos.

 

O Fio das Harpas, de Fer­nando Mi­guel Ber­nardes
Edição Mar da Pa­la­vras/​2009




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